quarta-feira, 19 de março de 2008

Conto Kaska - de Fábio Mandingo


Kaska

(ou : estudo sócio-etnográfico sobre os gringos carentes)

Existe no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, na Bahia, uma novíssima e pós-moderna categoria sociológica, única e característica desta região, facilmente detectável em qualquer rápida pesquisa, mas ainda não completamente estudada e fixada por sociólogos, antropólogos, ou historiadores da história recente que povoam suas ruas e vielas: o gringo carente.
Fenômeno temporalmente situado no início dos anos 90, disseminou-se mais amplamente a partir dos anos 2000, com a continuidade das reformas arquitetônicas começadas na década anterior. Espalhados por todo o perímetro do Pelourinho, são encontráveis ainda em áreas adjacentes, como Dois de Julho e Santo Antônio, andam sempre em bandos ou em casais, raramente se aventurando sozinhos. Exercem diversas atividades “produtivas”, como venda de artesanato, malabarismo, malabarismo com fogo, malabarismo com bolas, malabarismo com pinos, malabarismo com pernas de pau, coordenação de ongs, venda de artesanato, coordenação de projetos sociais e artísticos, cuspe de fogo, bandas de música africana, dança do ventre, música flamenca, percussão africana, heiki, permacultura, venda de artesanato, astrologia e pudemos registrar mesmo o caso de um dos indivíduos estudados que instalou uma mesa para jogo de búzios em pleno Terreiro de Jesus, desaparecendo em alguns meses, fato cujo motivo não conseguimos apurar completamente. Fontes orais afirmam que brevemente teremos por aqui alguns deles ministrando cursos da tradicional Capoeira Angola.
São em sua maioria, jovens desiludidos com a rotina estressante das grandes capitais do primeiro mundo, mentes livres que não compactuam com o sistema opressivo e genocida construído por seus pais e avós, e que simplesmente caíram na vida, deixando o peso de suas culturas penderem sobre nossas cabeças. ( Se bem que o pesquisador não deva envolver-se emocionalmente com o objeto estudado, peço desculpas). Têm formação acadêmica em boas universidades dos seus países, mas não atuam em suas áreas de formação. Muitos guardam bem guardados, cartões de crédito internacionais, que podem ser usados a qualquer momento, embora isso não os impeça de ousar inúmeras façanhas para garantia de sobrevivência, como tentar vender pulseirinha de palha por cinco reais, vender berimbau de cabo de vassoura, disputar sinaleira com menino de rua, dar rasteira em roda de capoeira, vender cocaína com sonrisal e tomar sopa da LBV na Baixa dos Sapateiros, entre outras coisas. Estão pelas ruas do Pelô, vestindo suas roupas improvisadas e coloridas, cabelos trançados como o dos rastafáris, sandálias de couro, pulseiras de cobre, com os corpos cobertos por tatuagens e piercings.
Entre todos eles, Kaska era o pioneiro:
- Yo toi aqui desde qui o pelorino era mangue, mano, yo soy niño do Maciel, del tiempo in que nego tomava pico de xarope pra tosse, e llamar una mujer de donzela era ofensa gráve, entendió ahora?
De fato, Kaska zanzava por ali desde os anos setenta, e embora não fosse nenhum grande malandro, do tipo que sobreviveu pela força, foi ficando na moralzinha, agradando uns aqui, deixando passar outros ali, fazendo média. De todo jeito, não escapou completamente ileso de sua epopéia pelorínica, carregando algumas cicatrizes no rosto e nas costas, da vez em que teve que esfaquear um agiota, ou da vez em que quebrou a tíbia de um traficante por cuja mulher se apaixonara. Tinha também suas passagenzinhas de 16 e de 12, e mesmo de 157 marcou sua loteria. Teve de sair fugido por várias vezes, mas como ninguém consegue se livrar do Pelourinho, voltava assim que a poeira baixava.
Seu portunhol horroroso fazia todos creditarem-lhe origem Argentina, mas o cara era na verdade, um sueco que morava nos Estados Unidos, mas que saiu de lá assim que morreu o Jim Morrison, e veio pra Salvador na mesma onda hippie que trouxe Janis Joplin e Mick Jagger pra cá. Seus ideais de pregar a paz e construir a liberdade, desceram pelo ralo no exato momento em que sua Kodak foi roubada, logo na primeira semana, e que a mão pesada do negão se fez sentir em seu pescoço por mais várias semanas. Plena ditadura militar, o Pelourinho era um verdadeiro inferno, uma terra de ninguém com leis e tradições próprias, sujeitas a serem descumpridas a qualquer momento. Um lugar sujo, em ruínas as casas e as pessoas, um gueto terrível, onde as drogas eram café da manhã, a prostituição meio de vida, a morte presença corriqueira. E ele, pelo menos, sobreviveu.
Cara chupada, cabelo loiro liso, escorrido. Olhos azuis quase invisíveis. Alto, magro, seco mesmo, várias tatuagens nos braços e pernas, parecia o Iggy Pop depois das drogas, um coroa enxuto, fígado, pulmão, baço, pâncreas, coração, tudo duro de tanto excesso, tinham virado couro, e resistiam. Andava sempre com a mesma roupa, ou alguma outra muito parecida: Tênis, meia baixa, bermuda cargo, camiseta sem mangas, boné camuflado, usava sempre uma pulseira de couro preto no braço direito, uma medalha de guerra americana no pescoço, umas argolas de alargar o lóbulo, uma figura. Ninguém sabia se lhe chamavam de Kaska, porque era um sujeito casca-grossa, se porque dele somente restava a casca, ou se era algum nome gringo esquisito.
Para os gringos carentes, era um herói, uma referência. Kaska fazia o intermédio entre os recém-chegados e os nativos, entre os novatos e as quebradas do Pelô. Ensinava-lhes as gírias, os trejeitos, levava pra festas fechadas, pra as rodas de capoeira, apresentava os gringos carentes aos nativos, os nativos aos gringos mais-ou-menos, os gringos mais ou menos pros gringos ricos e os gringos ricos para os nativos. Na verdade, era justamente como intermediário da fuleiragem, que Kaska, engenheiro náutico, vinha se especializando e tirando daí o seu bom sustento, vivendo como bon vivant, pelas ruas da Bahia, sendo cafetão, traficante, aliciador, ladrão, alcoviteiro e caguete, sendo tudo isso, e não sendo nada disso, sem dar um prego.
- Veja mano, yo tengo cocaína da boa, da pura boliviana, entendió? Pura, pura, pura, capaz até de ustê passar mal, costumado a mistura mexicana.
- Good, good, v-ou com vo-cê, right?
- Non, non, non, és mui peligroso, muchos gângsters, ustê entendió ahora? Gângsters!
- Good. How much money?
E pronto: descia Kaska a 28 de setembro com o bolso cheio de grana pra buscar com Maria Baleira um grama de pó, misturado com tudo o que é pó e que é branco, de talco a doril, cheio de marra:
- Quanto agora Kaska?
- Uma G, dona Mary, da boa!
- Quanto você tirou do gringo seu malandro?
- Coisa poca, dona Mary, peteca de 200, lá na tierra del´ non compra nem una carrera.
- Safado!
- Qualé dona Mary, bolso de otário és de boca pra baixo, nunca obiu dizer?
E deixava a velha sorrindo com os poucos dentes que restava, por detrás do tabuleiro onde vendia doces e chocolates. Bom negócio pra ela, freguês constante, vinha três ou quatro vezes por dia, não pedia fiado, não pechinchava o preço, cara conhecida, não despertava suspeitas.
Se esse mesmo, ou outro gringo queria uma mulher, Kaska não marcava bobeira:
- Meniña mi querido, adolescente, non te gustas? Peitito durito, bundón, non te gustas? Mujer también, si quieres, grande, gorda, magra., vieja, tu dices! Pero és mui caro, mucha plata, entendió? Mucha policía....
Tinha um quarto velho que ele alugava em caráter permanente, na Rua Chile, espelho, tv, cama de casal. Daí re-locava pros gringos a preço de pousada de luxo, devido ao ilegal da coisa, o risco. E descia Kaska atrás da Manuela, pra fechar o negócio:
- Qualé Manú, yo sé que ustê non és puta, yo sé. Pero ustê quiere ir pra Europa, non? Yo estoy te ajudando, ahora ustê me ajuda, correcto? É só foder com o gringo, dá-lhe uma foda bem gostosa e apaixona o gringo. Non leva fé em tu potencial?
- Qualé uma porra, Kaska, eu não sou puta não! Você sabe que meu sonho é casar na igreja, ir pra Europa com um loirão desses, mas e se o filho da puta resolve me escravizar do lado de lá? Eu já ouvi falar...
- Qui obiu falar nada Manú. És gringo, és otário, otarón, ustê entendió? Otarón, un Zé Boceta que nunca biu una xoxota vermeja qui nem a sua. Tu embuceta ele e vai pra Europa de primera classe, entendió ahora?
Comprou um andar em um sobrado no Santo Antônio, só nessa brincadeira. Vista pro mar, rede de Sergipe, máscaras do Senegal, móveis de vime, bar de angelim polido, com os melhores vinhos que seus amigos traziam de várias partes do mundo, como mostra de gratidão. Ali ele comia as gringas carentes doidas por cocaína, as gringas mais ou menos só de passagem, as nativas pretas, as morenas, as brancas, enquanto fumava haxixe marroquino e escutava Brahms e comia sushi.
Kaska investia também no lucrativo mercado das relações interraciais. As gringas vinham loucas por uma rola preta, os gringos vinham malucos por uma perereca vermelha. Por aqui, as meninas fascinadas no sonho do príncipe encantado, os caras, eram músicos, capoeiristas, percussionistas, miseravões em geral, duplamente alucinados, na adoração da mulher branca, e no sonho do dinheiro fácil no hemisfério norte. Muitos guardavam todos os centavos extras, moeda por moeda, e como no estouro de uma caderneta de poupança, procuravam Kaska, pra encaminhá-los no arriscado jogo da vida:
- Porra Kaska, esse é todo o meu dinheiro, velho, eu juntei esses anos todos, tá ligado? Me dê uma força mano, minha vida depende de você!
- Fique tranqilo hermanito, ustê estás com suerte, están chegando unas amigas holandesas. Está bién pra ustê? Holanda, Amsterdan, tierra da liberdad, da heroína. Pero depende de ustê, conquistar la mujer, hacê-la impressionada, está bién? Yo hazgo mi parte.
Então realizava pequenas festas íntimas em sua própria casa, despretensiosamente apresentava o cliente à holandesa-alvo e lhe dava quase sem querer, suas credenciais:
- Este és um querido amigo de muchos años, grán mestre de capoeira, músico de primera qualidad, sabe tudo sobre a Bahia, conhece a toda la gente, és muy amado, verdadera personagén de um libro de Jorge Amado, ustê precisa conhecê-lo!!
Vinho grego vem, haxixe marroquino vai, pôr do sol no terraço, já saíam de mãos dadas. O que mantinha a lucratividade do negócio, era esse mesmo sujeito voltar ao Pelô uns oito meses depois, de carro zero, distribuindo Malboro pros mais chegados, tênis Nike no pé, corrente de ouro no pescoço, passaporte com cidadania dupla no bolso, criança no carrinho, charlando de gatão. Brilhava o olho dos passa-fome que se escanteiam pelas ruas tortuosas e cheias de história e de estórias, e todos pensavam que podiam ser os próximos.
O sol se punha sob a baía de todos os santos. Na cruz caída, os casais se apaixonavam novamente, os bem-te-vis davam sua volta de despedida no ar poluído da hora de rush. Os carros engarrafavam a Ladeira da Montanha. Talvez uma febre leve escorresse no Pelourinho nessa hora. Não aquela febre convulsiva e nauseante dos anos pré-reforma, uma coisa leve, febre ainda, mas leve, sem ameaça de morte, somente de certeza de doença, alguma moléstia de infecção lenta e interna, que parecia queimar devagar as vísceras expostas daquela comunidade muito louca formada por estudantes, comerciantes, gringos, putas, traficantes, militantes, artistas, poetas, funcionários, lésbicas, homossexuais, simpatizantes, travestis, crentes, macumbeiros, católicos, espíritas, profetas, capoeiristas, trançadeiras, viciados em crack, políticos, vendedores de fitas do bonfim, bêbados, policiais, taxistas, caguetes, quase todos eles eram.
E foi na caguetagem que Kaska se atrapalhou. Andava por ali um novo delegado de proteção do turista, um sujeito muito truculento e dado a todas aquelas artimanhas policiais perniciosas, que mesmo os próprios policiais vêm tomando nojo. Arregueiro, torturador, estuprador, matador, aparência suína, sempre suado, coisa de pornochanchada. Buscava de todo jeito derrubar um traficantezinho de crack fuleiro, que no entanto, lhe dera uma verdadeira rasteira de capenga. Buscando proteção com policiais de outra delegacia, reusou sua proteção na cara-dura, no queixão, e mandou-lhe cuidar da sua vida. Óquei, não ia provocar um acidente diplomático com os colegas de outro distrito, mas vejam só: se deixasse por isso mesmo, ia virar comédia e qualquer vagabundo de terceira do Maciel iria querer tirá-lo como otário.
- Você vai me dar o cara, Kaska, você é meu amigo, sério, quantas vezes eu já te livrei de flagrante, seu escroto, já desandei gringo com hemorragia nasal das merdas que você vende...
- Non, non, non, you non bendo nada, entendió? Yo non bendo nada!!!Yo non soy su amigo, non mi conte sus problemas, correcto?
- Gringo filho da puta, eu te dou um flagrante de prostitução infantil e jogo sua cara no programa do Varela pra todo mundo ver, seu sacana, ainda boto nego pra comer sua bunda no xadrez....
- Non, non, non, yo non soy gigolô, adianto os lado dos amigos, que há? Pero nosotros podemos si conversar. O que ustê quer qui yo hazga?
- Nada de mais, meu amigo, me entregue o verme. Compre uma pedra na mão dele, e eu dou o flagrante, e o vagabundo vai pra minhas mãos.
Kaska pensou, acendeu um cigarro pra pensar melhor. Não era dedo-duro, mas estava sendo pressionado e sabia que o outro, no lugar dele, já teria fodido sua vida sem pestanejar. Não era moral, era sobrevivência. Além do quê, mais uns dias e o cara tava na rua de novo, vendendo suas pedras.
Desceu o Quebra-Bunda por volta das dez da noite do outro dia, sozinho. O alma- suja enquadrou logo na entrada.
- Pedra gringo? Eu pensei que você só gostava da boa, cuidado pra não desandar, viu?. Quanto quer?
Foi o sujeito tirar a parada do bolso, e o guardinha chegar enquadrando, naquela pressão de sessão da tarde:
-Polícia, polícia, deita, deita!!!
Kaska saiu fora. O cara lá com a cara colada no chão, tomando baculejo de dois, ele saiu fora. Quase na frente da Cruz do Pascoal ouviu os disparos, virou pra ver. O guardinha atirando no cara deitado, até o revólver parar de responder. O escroto pegou pesado, disse que ia só dar o flagrante, segurar por uns dias, dar umas porradas. Agora era cúmplice de assassinato. Foda-se, era só um sacizeiro, um ninguém. Ele era um sobrevivente, não tinha mais culpa do que qualquer um, que entrava no jogo sabendo dos riscos que corria. Foda-se, mas sua pressão baixou, e precisou sentar em um batente da escadaria do Passo pra a respiração voltar, o coração desacelerar. Policial escroto, porque tinha de envolvê-lo naquela merda?
Desceu pro Carmo, bebeu um conhaque. Cagüete. Assassino. Merda, nem sabia que tinha uma consciência pra pesar. Levantou chateado, mas melhor. Foi no moquifo da Rua Chile, tomou um banho frio e se jogou na cama. Dormiu pesado até as dez da manhã, assombrado por sonhos que não conseguia lembrar.
O dia era o mesmo de sempre: calor de derreter o juízo, picolé de amendoim, pernas, coxas grossas, sexo em tudo, barulho de carros, briga de guardadores de carros já bêbados. Sorriu pra a baía que se estendia desde a Praça Municipal até a ponta de Humaitá. Lá embaixo, o mesmo joguinho de matar e morrer e atrasar o lado de quem estiver mais próximo, nunca esteve tão cansado, perdeu até a fome e andou pro sobrado no Santo Antonio. A casa estava toda revirada, uma bagunça. Os móveis revirados, as garrafas de vinho espatifadas. Os Cd´s quebrados, os livros rasgados, o calor do dia de mormaço fazia-lhe transpirar como um louco dopado. Olhou na janela, a Baía lhe parecia uma vadia cínica, suja, doente, infecta, sorrindo, sorrindo, refletindo o sol em pedaços de diamante.
Caguete, um gringo filho da mãe, todo mundo viu, caguetou o menino e saiu andando na boa. Um sacizeiro, é verdade, mas o gringo filho da mãe...Cheio de dinheiro, comendo as mulheres mais gostosas, enchendo o chicote de dinheiro sem trabalhar, bebendo do bom e do melhor, na cara-dura. Acontece o que é bem normal por aqui, o sacizeiro tinha um irmão polícia, civil, da outra delegacia que tava lhe dando proteção. Parece que não era só questão de arrego. O guarda segurava o menino porque era seu sangue, dava pra cuidar, tomar conta, e quem sabe um dia, jogar numa clínica o irmão desandado, botar na igreja, dar esse gosto pra a mãe velha.
Pegaram Kaska todo bonito, com a mesma roupa velha que podia ser outra muito parecida, tomado banho, cheirando a alfazema, comprando cocaína na 28, na banca de Maria Baleira. A morte lhe pareceu o mesmo que uma baixa de pressão. Um frio tremendo, a dor da bala alojada na coluna, a outra logo perfurando seu pulmão. Deixado sangrar na rua suja de cocô de mendigo. Maria Baleira, nada viu nem ouviu.
Eu também não, mas ouvi dizer que o sobrado no Santo Antonio tinha sido invadido por um grupo de sem-tetos que estavam dando a maior dor de cabeça pra o IPAC e pro governo.

(Mandingo, 1o de Março 2008 (Ouvindo Peter Tosh, Erykah Badu, Felá Kuti, Curtis Mayfield, AllGreen e Miles Davis)

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